O remake de Vale Tudo, novela clássica de 1988 que voltou ao ar em 2025 com texto de Manuela Dias, confronta dilemas fundamentais — mas peca ao ignorar a lógica dramática e deturpar a mensagem que consagrou a obra original.
O arco de Raquel ilustra bem o problema. Depois de conquistar sucesso com a Paladar e faturar 1 milhão em um reality culinário, a personagem, interpretada por Taís Araújo, inexplicavelmente volta à praia vendendo sanduíches, como se nada tivesse acontecido. Ainda mais incompreensível: sua amiga Aldeíde, personagem de Karine Teles, investe uma fortuna em um cavalo, mas não ajuda Raquel a erguer algo novo. Já Ivan (Renato Góes), namorado da protagonista e executivo bem sucedido, também aparece sem recursos, sem nenhuma justificativa plausível para essa queda.
O destino de Maria de Fátima (Bella Campos) também é mal trabalhado. É verdade que, pelas cláusulas do contrato com a família Roitman, ainda não se passaram dois anos para que ela tenha direito a algo. Mas a inconsistência está no fato de que a personagem foi construída como uma influencer de enorme sucesso dentro do remake, e mesmo assim aparece completamente sem alternativas depois do divórcio. Num cenário em que influenciadores reais conseguem se reinventar com campanhas, publis e novos nichos, acreditar que Fátima simplesmente não teria nada soa forçado e pouco crível.
Outro enredo que desafia a credulidade é o de Ana Clara (Samantha Jones), que se casa com Leonardo (Guilherme Magon), filho de Odete Roitman (Débora Bloch). O personagem é retratado como totalmente incapaz de falar ou tomar decisões, mas ainda assim uma juíza aparece para validar a cerimônia sem grandes obstáculos. Uma situação que beira o inverossímil, mesmo dentro do universo novelesco.
Mas o golpe final é a perversão da mensagem original. Em 1988, Maria de Fátima, traidora, bate à porta de Raquel e leva um “não”; Raquel rica e poderosa escolhe a honestidade e a integridade. A mensagem era clara: vale a pena ser honesto no Brasil, mesmo que o caminho seja difícil. O remake inverte essa noção: Raquel perde tudo sendo íntegra, ao mesmo tempo em que Maria de Fátima também se dá mal por sua desonestidade.

“O remake simplesmente crava: ‘Não vale a pena ser honesto no Brasil e nem ser desonesto. De um jeito ou de outro, você vai quebrar a cara.’”
Ao ignorar a essência da obra original, Manuela Dias insiste em arcos rasos e desconexos, como o súbito diagnóstico de câncer de Afonso, que surge sem construção prévia e já dá sinais de ser mais um enredo criado apenas para gerar repercussão imediata nas redes sociais.
A sensação é de que, no alto de sua prepotência, a autora do novo Vale Tudo prefere apostar em buzz momentâneo no X e em trending topics do que em uma narrativa sólida e minimamente crível. No fim, resta ao público a sensação de estar diante de uma novela que não respeita nem sua própria lógica, nem a inteligência de quem a acompanha.
Mais sobre Vale Tudo
O remake de Vale Tudo estreou em comemoração aos 60 anos da TV Globo adaptado por Manuela Dias com direção artística de Paulo Silvestrini. No elenco, Taís Araújo vive Raquel Accioli; Bella Campos é Maria de Fátima Acioli; Renato Góes interpreta Ivan Meireles; Débora Bloch dá vida a Odete Roitman; Cauã Reymond é César Ribeiro; Paolla Oliveira e Humberto Carrão aparecem como Heleninha Roitman e Afonso, respectivamente. Assim como no clássico de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, a trama coloca em debate ética, ambição e corrupção no Brasil — mas a nova versão parece cada vez mais distante do impacto e da profundidade da original.
Vale Tudo vai ao ar de segunda a sábado no horário nobre da Rede Globo.